Ontem, dia 22 de outubro, a Meta (anteriormente conhecida como Facebook) começou a integrar umaferramenta dessas que estamos convencionando chamar de IA nos grupos do WhatsApp [1].
Ao que tudo indica, chegou a hora de a empresa coletar os dividendos resultantes do investimento feito em quando pagou 22 bilhoes de dolares pelo aplicativo de mensagens em 2014 [2].
Para fins de referência, a Meta pagou um bilhão de dólares pelo Instagram em 2012 [3]. Hoje, 12 anos depois, o Instagram proporciona à meta quase 50 bilhoes de dólares em lucro anual [4].
Era, portanto, de se esperar que a empresa estivesse investindo pesado em formas de lucrar com a compra do WhatsApp. Como comecei falando, parece que este momento chegou.
O potencial sempre foi alto (acho que isso fica claro ao observar o intervalo de tempo entre a compra do Instagram e a compra do WhatsApp e a diferença dos valores pagos pelos dois produtos). Apesar disso, até hoje o WhatsApp não mostrava números de faturamento muito convincentes.
Ainda assim, a empresa sempre apostou muito no aplicativo.
O motivo disso é bem claro: as informações que são trocadas dentro do ambiente do WhatsApp são valiosíssimas. É no WhatsApp que as pessoas vão trocar confidências com quem não está perto. É por ali que você e as pessoas com quem você tem intimidade vão conversar sobre coisas que não querem que o resto do mundo fique sabendo. São em diversos grupos de mensagens privados que funcionários agilizam a execução de tarefas e conversam sobre o trabalho em inúmeras empresas ao redor do mundo. O potencial deste mundo de informações é virtualmente ilimitado. Por isso que quase ninguém estrenhou que por dez anos o aplicativo seguiu gratuiito e gerando muito pouco em faturamento para o Facebook / Meta.
Dados de 2023 mostram que naquele ano, o WhatsApp gerou perto de 1.3 bilhão em lucro [5 ].
Voltando às comparações, isso é quase 50 vezes menos que o Instagram gerou em lucro no mesmo ano. Observando essa diferença e aquela outra referente a quanto cada um dos produtos custou, é de se esperar que a fome da Meta seja grande. Os acionistas devem estar mais do que ansiosos para ver o dinheiro começar a entrar de verdade em retorno pela compra do aplicativo dez anos atrás.
Com as ferramentas de aprendizado em larga escala, chegou a hora da colheita.
Mas aqui cabe um parênteses. Estou falando dessa forma, com a perspectiva de retorno efetivo de investimento começando a acontcer agora em função dos números reportados pelo Facebook / Meta. Há quem pense e insinue que ações de publicidade altamente direcionada no Instagram já estejam usando dados obtidos em conversas no WhatsApp há tempos [6].
Então… a ferramenta de IA no WhatsApp foi anunciada esta semana.
Desde ontem, para mim, os grupos dos quais participo agora tem um membro a mais, a IA da Meta. Isso não parece estar ainda 100% claro para todo mundo. Em meu caso, eu uso o WhatsApp no iPhone e no computador, versão web. Como na versão da web as coisas demoram a aparecer, não é de se estranhar que nada apareça lá durante os próximos dias ou mesmo semanas. No entanto, também não consigo ver nada de forma muito clara no aplicativo de meu telefone. A única coisa que percebo é essa diferença de uma unidade entre o número de pessoas declaradamente presentes num grupo e o numero de usuários que eu conto no grupo. Tem sobrado uma pessoa (a IA da Meta). Ontem, em um dos grupos que participo, algumas pessoas ficaram “conversando” com essa IA. A ferramenta argumenta que basta que retiremos este membro do grupo para que o recurso de IA nao seja usado.
Só que as coisas não são bem assim.
O fato de a empresa ter inserido um componente no grupo a revelia dos participantes é complicado.
Outra coisa a considerar é a assimeteia de poder, muito bem argumentada pela Cathy O’Neil no livro Weapons of math destruction [7]. Quando nós (pessoas) entramos em um grupo de WhatsApp, não temos acesso ao que foi discutido antes de nossa entrada lá. Faz sentido. No emtanto, não sabemos se o mesmo acontece com esta IA da Meta. Da mesma forma que ela guarda em seus servidores todo o histórico das conversas, por qual motivo não daria acesso a esse histórico para a sua ferramenta de aprendizado de máquina? Por via das dúvidas, devemos considerar que esta ferramenta terá acesso a todo o histórico de conversas do grupo. Como disse, por quê ela não teria?
A Meta / Facebook já nos deu mais do que uma vez provas de que não faz exatamente o que fala que faz; lembra do caso do advogado belga retratado no filme “terms and conditions may apply” [8]? Então, mesmo que o dono de um grupo não queira esta funcionalidade e retire a IA, não há qualquer garantia de que todas as conversas anteriores já não tenham sido coletadas e agora abasteçam o aprendizado e os bancos da Meta / Facebook.
Isso é muito grave.
Com os dados de um sem numero de grupos e conversas, a empresa tem em suas mãos uma quantidade de informações inimaginável.
Ações de publicidade altamente direcionada no Instagram e no Facebook é o minimo que podemos esperar como consequência disso.
Entretanto penso que a coisa seja ainda mais grave e o buraco seja ainda mais profundo.
Pense na quntidade de grupos que você participa referentes a trabalho. Se voce trabalha em uma empresa com mais de 50 funcionarios, chances são que muita coisa da gestão da empresa aconteça justamente ali naquela plataforma. Pense nos grupos que envolvem os seus chefes. Pense nos grupos que envolvem os diretores da empresa; os tomadores de decisões.
Tudo o que eles disseram está abastecendo a IA da Meta e não há quem me prove que a Meta já não esteja fazendo isso.
O problema é que agora ficou público; talvez porque verdadeiramente tenha chegado o momento de coletar o retorno pelos 22 bilhões de dólares investidos em 2014.
Então, tão importantes quanto nossos dados e mensagens individuais, pensemos no impacto dessa ferramenta ter acesso a informações da gestão de milhares de empresas. Pense que os gestores, diretores e executivos conversam sobre assuntos delicados nesse aplicativo e a Meta agora formalmente sabe de tudo. No mínimo, saberá de tudo a partir de agora (pisca, pisca).
Tendo conhecimento do histórico e da falta de cuidado que a empresa tem com as informações que coleta, isso e assustador [9].
Não que ela não coletasse dados antes. Isso é bem possível e plausível, visto que ter inserido um novo membro nos grupos sem que ninguém fosse consultado é um indicativo de um comportamento altamente invasivo.
Reforçando, o que é grave neste momento é que isso está às claras.
Ou seja: é bem possivel que dados estejam sendo coletados há um bom tempo.
Mas, então, o quê fazer?
Tão certo quanto o desrespeito à privacidade por parte da Meta é saber que veremos muitos argumentos do tipo “Mas o WhatsApp já sabe de tudo mesmo, que mal faz?!”. Ou então a argumentação de que “já está tudo lá mesmo, não há o que fazer!”. Estes argumentos são preguiçosos e sabemos disso. Devemos lutar contra eles com contra-argumentos coerentes.
Pensemos nessa situação e sua analogia com a de uma pessoa que fuma há alguns anos e descobre um efizema pulmonar. Será que essa pessoa vai reagir com um “Ah, mas agora já estou com este efizema, não preciso parar de fumar!” ou será que ela é aconselhada pelo seu médico a parar de fumar em função disso? Eu acho que a segunda possibilidade é mais plausível. Se a pessoa quer manter-se viva, o ideal é que ela pare de fumar. Não é? Pelo menos é a mudança de atitude esperada. Sabemos já haver um dano, mas isso não significa que porque este dano ja esteja feito que nao exista mais solução. A solucao é parar de fumar.
Outro exemplo: uma pessoa que nunca cuidou da alimentação pode descobrir que tem diabetes antes dos 50 anos. O comportamento esperado é que exista uma mudança de hábitos para tentar parar o avanco da doença. Se a pessoa continuar com estes hábitos, as consequências podem ser a cegueira e amputação de membros. Nesse sentido, pessoas que descobrem que tem diabetes costumam mudar comportamentos.
Então. Tal qual uma pessoa que descobriu um efizema ou recebeu o diagnóstico de diabetes, devemos mudar de atitude. Meu argumento é que devamos evidenciar essa necessidade para todos. Por isso estou aqui.
O tempo que usamos esta plataforma causou um dano. A aplicação dessa IA nos chats é um sinal desse dano. Este dano pode não ser visível agora, mas sabemos que ele vai nos causar problemas em breve se seguirmos com este comportamento. A solução é mudar de comportamento.
Feito o dano, não quer dizer que esteja tudo perdido. A gente deve – como pessoas responsaveis – agir ativamente para impedir que o dano continue / aumente ou nos traga mais prejuízo.
Por isso, o que tem pra hoje é que a gente deve mudar de hábitos. Minha sugestão para o momento é usar o Signal [10].
Você pode ter dificuldade em convencer algumas pessoas, clientes ou colegas de trabalho, mas não deve deixar de tentar. Mude o que conseguir mudar para o Signal.
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